Quando saltou da carroceria da camionete, não pode deixar de admirar-se
pela paisagem que se apresentava ante seus olhos: uma desolação só. A casa
principal em ruínas, a cerca caída e o que sobrou da porteira encostada numa
velha roda de carro de boi. O mato tomava conta do que antes fora um terreiro e
a casinha de cachorro abandonada dizia que não havia morador ha muito tempo.
Soube depois que o cachorro mudou-se por espontânea vontade. Mas quem moraria
numa semelhante ruína?
A passos rápidos,
decididos, resolveu verificar. Não poderia estar enganado. O endereço que
trazia em mãos apontava exatamente para aquela estância gaúcha. Ainda teve
tempo de ver o bom homem que lhe trouxera sumir no horizonte. Na mente, as
palavras de alerta. “Não mexa com essa gente... são loucos”. O conselho trazia
certa temerosidade, mas ele não viajara tantos quilômetros para desistir.
De longe percebeu
a presença de uma guria. Loura, cabelos longos, corpo esguio regava as flores
com uma serenidade quase angelical. Dificilmente perceberia a sua presença se
não interviesse chamando-lhe a atenção. E foi o que fez.
-Ei!
Várias vezes
chamou até que a jovem ouviu e virou o rosto em sua direção. Olhos lindos,
azuis, que pareciam brilhar. Como se chamaria?
-Sim... -ela
respondeu, deixando o regador sobre o surrado banco de madeira.
-Estou procurando
alguém chamado Lara Manteufel...
Ela sorriu, hesitante, enxugando as mãos no
avental, enquanto se aproximava daquele homem estranho.
-Lara Manteufel... Minha mãe... Quem és tu?
-Um amigo de sua mãe – ele a fitou curioso. Por
que sua amiga não mencionara que tinha uma filha tão encantadora? Ante a
perplexidade da moça, perguntou:
-Ela está?
A jovem
baixou a cabeça por alguns instantes. Um rosto triste ergueu-se depois.
-Ela... Morreu.
Na semana passada...
A notícia o pegou de surpresa.
-Morreu? Como
assim? Nós falamos ha poucos dias... Ela me deu esse endereço...
-Minha mãe nunca
morou aqui. Essa fazenda é da minha avó, mas elas não combinavam. Eu moro com
minha avó desde pequena. Minha mãe morava em Porto Alegre. Morreu de câncer...
O homem não tinha
palavras pra dizer. Ficou alguns instantes em silêncio, meditando. Por que Lara
lhe dera aquele endereço? Teria ela planejado para que conhecesse a filha?
-Meu nome é
Cristina... Já que veio até aqui, entre. Vou te servir um chimarrão...
Ainda atordoado com a revelação ele entrou, sempre a
meditar. Qual seria a intenção de Lara Manteufel ao pedir que a encontrasse
nessa fazenda arruinada? Como diria à jovem que conhecera a mãe num bate papo
na internet?
Ela parecia adivinhar seus pensamentos.
-Conheceu minha mãe on line, não foi?
-Pra dizer a verdade...
-Minha mãe adorava essas coisas. Várias vezes a fui
visitar e a encontrei debruçada no computador. Minha vó odeia tecnologia. Por
isso elas nunca se deram bem...
Enquanto tomava o chimarrão, não pode deixar de
reparar na casa. Uma velha construção, datada dos tempos de ouro das estâncias
gaúchas. Hoje, relegada ao abandono. E mais uma vez ela parecia ler seus
pensamentos.
-Minha vó é uma mulher doente. Está em tratamento no
hospital de Porto Alegre... Ha muito que essa estância precisa de cuidados...
Depois do chimarrão, um suspiro desanimado
brotou no peito daquele homem misterioso. Olhou a velha mochila, companheira de
viagem e lhe dirigiu umas palavras em silêncio. “Puxa, minha amiga... dessa vez
a viagem foi em vão”.
Cristina sorriu, olhos brilhando.
-Está tarde. Vou
lhe preparar um lugar pra passar a noite. E um jantar pra refazer as forças.
-Não será
preciso, minha cara amiga. Vou embora agora mesmo. Vim atrás de sua mãe, mas
parece que cheguei tarde... Não tenho mais nada a fazer aqui.
-Como vai embora agora? Não vi seu carro lá
fora... Como chegou aqui?
-Um velho homem me deu uma carona.
-Chico. Chico Lenhador...
Mas a guria tinha razão. A noite se aproximava
e não havia condução disponível pra levá-lo de volta à cidade. Teria que
pernoitar na fazenda.
-Não quero dar trabalho...
-Não vou deixar um amigo de minha querida mãe
ao relento...
Sem dizer mais
nada, a menina saiu da sala e voltou minutos depois com roupas de cama. Um
lençol florido, um travesseiro bem grande e um edredom. Na outra mão um par de
sandálias e uma toalha de banho.
Ele agradeceu com
um sorriso e foi tomar o banho. A noite chegava sorrateiramente enquanto
perguntas sem respostas pairavam na mente daquele homem vivido. Depois do
banho, um jantar rápido e a jovem lhe indicou o quarto. Tudo que precisava era
de uma noite de sono para por as idéias em ordem.
Mas a noite lhe traria algumas surpresas.
***
Tão somente algumas horas após se deitar um
ruído lhe chamou a atenção. Em princípio pensou tratar-se de algum dos sons
típicos da noite do campo, mas pondo sentido percebeu ser um som inteligível,
humano. Parecia uma canção.
Levantou-se, calçou o chinelo e saiu do quarto. No
corredor pode ouvir com mais nitidez. Era mesmo uma canção. Uma velha canção de
ninar, cantada em alemão por uma voz um tanto rouca.
Guten Abend,
gute Nacht, mit Rosen bedacht,
mit Näglein
besteckt, schlupf unter die Deck.
“De onde viria aquela voz”-pensou. Não era a voz da
Cristina e não teria mais ninguém em casa. Ou a jovem teria omitido a presença
de outra pessoa? A curiosidade acabou por vencê-lo e ele se pôs a procurar a
dona – sim, era uma voz rouca, mas feminina – que cantava a velha canção de
ninar.
Morgen
früh,wenn Gott will,
wirst du wieder geweckt…
A principio
parecia algo distante. No grande corredor que dava com os quartos da casa – e
eram muitos, a impressão é que vinha de fora. Mas na medida em que ia se
aproximando da cozinha a voz parecia mais próxima.
Morgen früh,
wenn Gott Will
wirst du
wieder geweckt…
Então ele parou diante de uma porta. Colou o ouvido
à velha madeira e teve a certeza. A voz vinha desse quarto. Sem conter a curiosidade,
abriu a porta vagarosamente. Uma surpresa o aguardava no interior do quarto. Na
penumbra pode ver uma pessoa deitada numa velha cama. Uma mulher velha,
aparentando uns oitenta e tantos anos. Olhos azuis, bem abertos, rosto
enrugado, cabelos longos e soltos, esbranquiçados, denunciando os anos que se
passaram. Ou não percebeu a presença do intruso ou fez que não. Limitou-se a
repetir a estrofe final da canção.
Morgen früh, wenn Gott Will
wirst du wieder geweckt…
Katharine Manteufel, mãe de Lara e avó de Cristina.
Só poderia ser ela! Mas o que fazia ali, se a guria havia dito que estava num
hospital em Porto Alegre? Havia algo muito estranho se passando naquela casa.
Não sem razão o velho Chico Lenhador o havia alertado no caminho, quando lhe
dera uma carona. Algo muito estranho, pra não dizer sinistro,se passava naquela
estância em ruínas. Haveria de perguntar a Cristina ao amanhecer o dia, tão
logo a visse. Por que havia mentido?
O odor exalado no quarto não era muito
agradável. Ele então saiu lentamente, como que para não chamar a atenção. Seria
a velha cega? Fechou a porta atrás de si e virou-se para retornar a seu quarto.
Muitas perguntas haveria de fazer à jovem pela manhã. Mas então um calafrio tomou
conta do seu corpo. Suas pernas tremeram e pela primeira vez sentiu um medo
inexplicável. E isso porque, ao virar-se deu de cara com Cristina Manteufel que
o fitava com um brilho estranho nos olhos.
Não conseguiu disfarçar o susto. Apenas tentou
desculpar-se:
-Estava sem sono...
-Mas o que fazia no quarto da vovó?
-Ouvi sons...fiquei curioso... pensei que
tivesse dito que ela estava num hospital em Porto Alegre.
Cristina virou-se, cabeça baixa.
-Não pudemos pagar mais... minha mãe é quem
sustentava. A estância não produz mais nada. Mas agora temos que esperar por
uma liberação legal de verbas... até lá não teremos dinheiro pra bancar os
custos do hospital. Fiquei com vergonha de dizer isso, mas agora que já sabe...
-Sinto muito. Não foi minha intenção
bisbilhotar.
-A vovó não pára de cantar essa canção de
ninar...
Fez que sim com a cabeça e fez menção de voltar
para o quarto. A noite ainda valia uma boa dormida. Além do mais, que mais
poderia fazer pra ajudar aquela gente? Iria repousar e talvez pensasse em algo.
Uma maneira de diminuir a angústia da jovem, uma idéia. Na cama pensaria em
algo.
Ia dormir, virou-se em direção ao quarto, mas
sentiu a mão da garota segurando-o pelo braço. Virou-se, fitando-a, tentando
adivinhar seus pensamentos. O que ela pretendia? O rosto sério, compassado,
respiração ofegante, um novo brilho nos olhos esverdeados...
-Venha comigo...-disse ela simplesmente,
arrastando-o em direção a seu quarto.
Ele relutou um pouco mas acabou por ir. No
quarto, ela virou-se rapidamente, apanhando-o de surpresa com um toque lábio a
lábio. Um beijo simples, mas carregado de desejo, que ele retribuiu sem saber
por quê. Os braços se entrelaçaram. O coração de ambos batia mais forte, como se
algo errado fizessem. O que se passava na mente de ambos naquele instante? Só
Deus soube.
Lábios com
lábios, ela derrubou aquele homem maduro sobre a cama. Atônito, ele permitiu
que ela subisse sobre o seu corpo, sem descolar os lábios. Idéias fervilhavam a
mil na cabeça daquele homem enquanto ela se despia rapidamente. A visão do
corpo nu da garota parece ter acabado com qualquer relutância por parte daquele
homem desconfiado. Ela demonstrava desejar o contato amoroso sem se preocupar
com a consciência. A garota havia se transformado. E o brilho nos olhos também
havia se modificado.
Sob a penumbra do
quarto o amor se fez. Um amor simples, mas carregado de desejo. Algo sublime
como ele nunca havia experimentado. Num antagonismo sem medidas, ela parecia
uma virgem inexperiente no olhar ao mesmo instante em que explorava o
relacionamento com a maestria de uma dama da noite.
Ele não se fez de rogado. Não entendia bem o
que acontecia, mas não perdeu a oportunidade de amar aquela garota estranha.
Fez amor com ela como se o fizesse com o amor de sua vida. O contato dos corpos
aconteceu como um passe de mágica, sempre sob a luz do amor. Mas que amor? Ele
não a amava, ela também não. Que sensação era essa que os motivava tanto,
então? Não era só o desejo, havia algo mais no ar naquela noite.
Por fim, corpos exaustos. Nus, abraçados no
leito de amor, descansaram. No quarto ao lado uma canção de ninar embalava o
sono dos amantes.
Guten Abend,
gute Nacht, mit Rosen bedacht,
mit Näglein
besteckt, schlupf unter die Deck…
Na manhã seguinte
ele acordou assustado, sem entender o que havia acontecido. Estava só na cama.
Vestiu-se e foi para a cozinha. O aroma do café matinal podia ser sentido lá do
quarto. No corredor, um calafrio tomou conta de seu corpo quando passou em frente
ao quarto onde jazia a avó da garota. Encostou o ouvido na porta mas não pode
ouvir nada.
Sentou-se à mesa, onde ela o esperava de cabeça
baixa, sem dizer uma palavra. Talvez estivesse envergonhada. Talvez
arrependida. Por fim ele quebrou o silêncio:
-Tudo bem contigo?
Ela fez que sim com a cabeça, enquanto mordia
um brote.
-Me diga uma coisa... quem vai tomar conta da
propriedade agora?
-Eu serei a herdeira quando minha vó se for...
mas não vou ficar aqui. Pretendo ir pra capital pra estudar.
-Vai vender a estância?
-Se achar um bom preço sim. Minha avó nunca
gostou dessa idéia. Mas temo que ela não vá durar muito...
-E depois...
-Depois o tempo dirá.
-Hum...
parece-me um futuro pouco promissor, com exceção da idéia de estudar.
Ela ficou em
silêncio o resto da manhã. Nenhum assunto mais lhe despertou o interesse em
conversar e ele acabou por deixá-la em paz. Se não queria conversar, tudo bem.
Quando ela mudasse de idéia ele já estaria longe.
Arrumou suas coisas na velha mochila e ficou ainda
meditando um pouco a situação. Não tinha nada a ver com aquele povo, mas não
podia deixar de demonstrar certa preocupação com a garota. Ela parecia
decidida, senhora de si. O brilho nos olhos mudavam de acordo com o que ela
pensava. Mas quem poderia decifrar seus pensamentos? Quando falava na avó havia
um brilho no olhar. Quando fez amor, outro. E por fim, num ambiente recluso de
palavras um terceiro brilho se via quando ela levantava a cabeça. Decifrá-los era
mesmo uma tarefa por demais difícil. Ele não o faria.
Na hora da despedida, ela ainda estava sentada
à mesa.
-Estou indo...-disse ele, simplesmente. –Vou
deixar o número do meu telefone na mesa. Se precisar de mim, não evite fazê-lo.
Estarei esperando.
Ela maneou a cabeça afirmativa, sem levantá-la.
Ele, coração partido, virou-se e saiu. Se tivesse voltado naquele instante
teria visto um brilho nos olhos diferente. Penetrante, intrigante. Um brilho
que poetas chamariam de amor. Mas ele jamais ficaria sabendo disso.
Do lado de fora ele seguiu a passos decididos
rumo à estradinha por aonde viera. Talvez encontrasse uma carona pra voltar à
cidade. Talvez não. Mas não queria ficar mais naquela fazenda em ruínas. Sentiu
o cheiro da morte lá.
Antes de virar a curva da estrada, uma última
olhada na casa. Na varanda, as flores ressecavam ao relento, clamando cuidados.
Num relance, julgou ter visto Katharine Manteufel sorrindo, com as mãos lhe
acenando um adeus.